LINGUAGEM
Não me recordo de ter sido verdadeiramente infeliz em casa dos meus avós. Julgo que essas temporadas da infância e do início da adolescência não seriam susceptíveis de infelicidade, até porque era quase sempre Verão e eu era então muito novo. Sendo a família do lado do meu pai nume- rosa, era raro, para não dizer inédito, o dia em que eu lá esti- vesse, nesses abençoados três meses de férias, e não visse a casa cheia de rostos conhecidos, presenças transitórias que cumprimentavam o meu avô, sentado na poltrona que desde sempre designara para si do lado esquerdo da sala, junto a uma das muitas estantes de livros que lá havia, e a minha avó, sempre numa azáfama, tanto no quarto dos brinquedos a passar a ferro como a deslizar entre a cozinha e a sala de jantar, de manhã e ao início da tarde, a esfregar a alcatifa verde já nessa altura muito coçada, ou então a cirandar com talheres e copos de um vidro com uma tonalidade opaca cor-de-laranja. Nesses meses, eu vivia satisfeito, e digo-o sem as habituais reticências a que tantas vezes nos obriga o cinismo da idade adulta, e uma parte substancial dessa satis- fação era resultante de um acesso quase ilimitado durante o dia ao quintal da casa dos meus avós, onde passava horas intermináveis a jogar futebol, a correr ou a praticar umas lutas com o meu irmão que deviam às mais rudes noções do karaté, do sumo e da luta livre.
Nas tardes tórridas desses verões no quintal da casa de Benfica, no Bairro de Santa Cruz, era habitual tanto eu como os meus primos (ainda em número reduzido nessa época) azucrinarmos a cabeça da minha avó (era a palavra que ela usava, no seu desespero contido face ao nosso zero em comportamento) com as sucessivas garrafas de água que despejávamos sobre as cabeças uns dos outros para nos refrescarmos, uma tarefa cuja realização se impunha como bastante inútil no momento em que eu e o meu irmão, na altura bastante gordos, nos púnhamos a correr no quintal, à torreira do sol (como o pai gostava de dizer, sacudindo as palavras para o ar num tom que tanto tinha de perplexo como de irritado), sempre com o inabalável objectivo de perdermos peso. Note-se, porém, que as nossas corridas no quintal não primavam pela diversão ou por algo que não desembocasse directamente na mais pura obsessão; é que não corríamos pelo quintal, antes ficávamos no mesmo sítio e corríamos a uma velocidade que, sem ser moderada, nos deixava a malha das t-shirts encharcada passados breves minutos. Isto diante do olhar desistente e saturado da minha avó, que, temendo que apanhássemos uma congestão ou uma insolação, não deixava de vigiar-nos junto à soleira da porta da cozinha que dava para o quintal, tirando de vez em quando os óculos para nos mostrar que o seu desespero era sério, consciente de que dos seus olhos vítreos rolavam plúmbeas lágrimas que lhe abriam sulcos acinzentados nas faces. Tudo isto aconteceu muito antes do advento dos telemóveis, um engenho que teria facilitado muito as tentativas de apressada comunicação da minha avó com o meu pai nessas férias de Verão, e bem sei que teria igualmente poupado as muitas frases balbuciadas quando telefonava para o escritório e tinha de passar pelo filtro infalível da voz arrastada e bonacheirona do Sr. Prates, que muito gostava de dar a conhecer à senhora o seu imenso gosto por voltar a falar com ela, embora nas férias de Verão falassem praticamente todos os dias, e de lhe perguntar por todos os membros da família O., que não eram poucos, mesmo já nessa altura, antes de esgotar a minha avó pelo cansaço da simpatia, obrigando-a a balbuciar um derradeiro e vencido “obrigado” antes de passar a chamada para o ouvido invariavelmente ocupado do pai, já com outro telefone, o da sua secretária, preso no garrote da mão suada.
O escritório do meu avô era uma fonte de mistérios e de pequenas surpresas aos meus olhos de criança excessiva- mente curiosa. Não sei, de facto, se a curiosidade é passível de ser excessiva, deixando de ser uma benfazeja qualidade para se transformar num terrível estorvo durante a vida adulta. De qualquer modo, olhando para trás, eu nem era capaz de atribuir um nome ao estado de encantamento embrutecido em que não raras vezes me achava mergulhado, de dar um nome à minha débil e bajuladora curiosidade, de tal forma eu a sentia em mim como o mais natural dos reflexos, principal- mente em certas manhãs e em certos fins de tarde das férias de Verão, quando, saindo o meu avô para ir comprar o jornal (o Diário de Notícias — nunca o vi a comprar outro) ou o pão para o pequeno-almoço dele e da minha avó ou para o lanche dos primos, dos tios e das tias que apareciam lá em casa com a naturalidade de uma esperada lufada de ar fresco, dizia eu que essa curiosidade vinha à tona sobretudo nas ocasiões em que o escritório do meu avô ficava temporariamente desabi- tado (o “castelo”, conforme era prática comum chamar a esse espaço no meio da família, do mesmo modo que designavam a cadeira acolchoada e já muito coçada como o “trono” do meu avô) e eu procurava destramente tornar os meus passos mais leves do que o ar (lembrava-me sempre da recomen- dação dos “pezinhos de lã” que ouvira nos meus primeiros anos de escolaridade e que nessa altura já eram o começo da minha primeira miragem privada), esforçava-me inutilmente por abrir em silêncio o trinco da porta, que fazia ranger a sua lingueta metálica, e sem fechar a porta atrás de mim (nunca teria ousado fazê-lo, nessa idade ou noutra) tentava uns curtos passos no interior encerado do escritório e ficava embasba- cado a olhar em redor. A minha surpresa não se prendia com um ou outro objecto novo que eu nunca tivesse visto pousado à beira de uma das estantes ou no meio da doida profusão de papéis, jornais antigos e bugigangas várias que ocupavam por inteiro a superfície da mesa de trabalho do meu avô. Talvez fosse o cheiro intenso que irrompia pelas minhas narinas e que na altura me parecia uma bizarra mistura, tanto repe- lente como cativante, de óleo, gasolina, sebo e canela, enove- lando-se na camada espessa de pó que quase proibia a entrada ao meu irmão, então gravemente asmático, e cobria as foto- grafias toscamente penduradas em duas paredes, nas quais conspiravam em silêncio os rostos ora baços ora reluzentes de netos e netas, filhos e filhas, cobrindo também os livros de engenharia e de mecânica, intermináveis colecções de obras que tanto tinham de eruditas como de manual de instruções, no meio das quais havia um ou outro intruso em forma de livro com ambições estritamente literárias.
Era assim, o escritório do meu avô, mutável à menor tenta- tiva de descrição, pois tudo o que aí eu pudesse encontrar era sujeito às deficiências do espírito algo indolente, embora inclinado para a tal curiosidade, que então se formava em mim, cheio de um repositório de pequenas e flagrantes igno- râncias, de estéreis desvios do olhar que turvavam irremedia- velmente a minha percepção da realidade. Uma vez, cheguei a escrever num tom afectado e presumidamente original que o escritório do meu avô parecia ter sido regado com gaso- lina, e, na verdade, até hoje não se tornou excessivo o meu arrependimento por tê-lo descrito com essas palavras coman- dadas pela pressa do coração.
Por vezes, encontrando-se o meu irmão ausente da casa de Benfica por alguma razão (sendo mais velho, arran- java — ou arranjavam por ele — outros modos de justificar a deliciosa inutilidade das horas de Verão), eu jantava com os meus avós na sala (quando havia mais gente, pelo menos cinco parentes em casa, era obrigatório ocuparmos a mesa de mogno da sala de jantar), com o som alto da televisão e os sucessivos flashes da telenovela mesmo à nossa frente, e quando passavam alguns minutos do término do episódio diário eu subia as escadas para me ir deitar. Geralmente, não precisava de me despedir da minha avó, pois sabia que, pelas onze, onze e meia da noite, seria a vez de ela se ir deitar, o que nunca acontecia sem que viesse primeiro dar um jeito à aspereza dos lençóis da minha cama ou sem dizer algumas palavras de circunstância, não necessariamente dirigidas a mim (embora ela julgasse que só a santinha sobre a estante do corredor conseguia ouvi-la), que eu tomava como um sinal infalível de que havia chegado a hora de eu lhe fazer um pouco de companhia às escuras no quarto de casal, com a minha avó já deitada e a sua mão enrugada que eu embru- lhava na minha, ao mesmo tempo que ela deixava escorrer numa voz casquinada os últimos queixumes do dia, tão natu- rais para a azáfama em que rodavam por vezes perras as suas horas diurnas, antes de me mandar para a cama, pois sabia que a qualquer momento seria a vez de o meu avô subir as escadas e preparar-se para se deitar. Quando o avô subia essas malfadadas escadas em que anos antes o pai dele, mais um espectro do que outra coisa, tantas vezes tropeçara até à queda final (pois só muito mais tarde é que um dos meus tios teve a óbvia ideia de colocar um corrimão), na maior parte das vezes passava já da meia-noite, e à medida que fui cres- cendo, andando à boleia de uma pretensa maturidade que tanto o pai como o meu irmão procuravam inculcar em mim à força de uma máscara de masculinidade que se servia de molhos picantes e de valentes goladas de água das pedras e de sumo de tomate, de Verão para Verão foi-se-me tornando familiar a mancha agigantada que a sombra do meu avô dese- nhava na parede que flanqueava o meu quarto e só terminava no grande clarão da luz eléctrica que brotava do escritório dele assim que levava o dedo certo ao interruptor.